Quando a culpa vira companhia: por que algumas pessoas se apegam à dor que as devasta
Quem não conhece a paz, adestra o sofrimento. Cria vínculos com ele, conversa à noite, confunde-o com intimidade. Há quem deseje curar-se, mas tenha feito da culpa seu animal doméstico. Dorme ao lado, oferece ração emocional e até inventa novas feridas para não perdê-lo. Não é masoquismo. É familiaridade. A dor conhecida costuma ser menos apavorante que o vazio do depois.
Muita gente se aproxima da análise esperando se livrar da dor. Mas o que frequentemente se revela é que a dor, paradoxalmente, também oferece amparo. Uma estrutura. Uma lógica. Um sentido. Ser aquele que sofre pode virar uma identidade relacional, uma maneira de garantir atenção, ou mesmo um álibi ético para fracassos afetivos. Freud, já em O Eu e o Isso, apontava como a culpa pode ser mais central que o desejo na organização do psiquismo. Muitas vezes, o superego não nos pune apesar de nossa infelicidade, mas justamente porque insistimos em gozar. É essa lógica perversa que transforma o prazer em culpa, e a dor em virtude.
Sartre dizia que somos condenados à liberdade. Mas há quem barganhe com essa sentença, oferecendo sofrimento em troca de perdão simbólico. Sofrer dá sentido, posiciona o sujeito como vítima, como inocente, como “o que fez tudo o que podia”. A dor, assim, vira argumento. Não se trata apenas de repetir o trauma — embora isso aconteça — mas de reencenar sua função: sustentar uma identidade, preservar uma narrativa, proteger-se de novas catástrofes com uma espécie de apólice emocional.
É por isso que certos vínculos só sobrevivem na dor. São laços que se alimentam de ressentimento, humilhação ou dívida. Se o sujeito melhora, o outro se afasta. Se perdoa, perde o lugar. Se se liberta, sente-se traindo algo. Porque, no fundo, há relações em que o amor se sustentava no cuidado com o ferido — e a cura seria o fim da dança.
Na clínica, vemos isso o tempo todo. Gente que, ao perceber melhoras, se sabota discretamente: esquece a sessão, evita um avanço, reluta em aceitar mudanças. Não porque não queira ser feliz, mas porque não sabe quem seria sem a tristeza. É o fenômeno da “lealdade à dor”, como propõe a psicanálise vincularista: quando alguém permanece identificado a um lugar de sofrimento porque isso assegura pertencimento. A lógica do inconsciente não é “vou melhorar”, mas “não quero perder o pouco que ainda tenho”.
A modernidade — com seu culto à performance, à resiliência e à positividade — transforma o sofrimento num fracasso pessoal. Isso só piora o problema. Quem está preso à dor passa a sentir também vergonha da dor. Isso reforça o ciclo: silencia, se isola, e para não sentir-se inútil, começa a encontrar função na própria ferida. Assim nascem os sujeitos mártires, sempre dispostos a se sacrificar para manter a ordem afetiva dos outros. São pais que nunca se curam para manter os filhos por perto. Casais que só funcionam na crise. Profissionais que só são reconhecidos quando adoecem. E também analistas que se sentem mais úteis quando o paciente está em colapso — confundindo escuta com poder.
É preciso diferenciar dor e sofrimento. A dor é inevitável. O sofrimento, não. A dor é do corpo. O sofrimento é da narrativa. E é essa narrativa que podemos desmantelar. Mas isso implica perder certas garantias simbólicas, deixar de ser o injustiçado, o incompreendido, o que sempre deu mais. É uma espécie de luto narcísico: morrer para a versão ferida de si mesmo.
A saída? Não está em apagar a dor, mas em reformular sua função. Permitir que ela deixe de ser identidade e vire passagem. Isso exige, muitas vezes, uma travessia sem testemunhas. Porque enquanto houver público, haverá tentação de manter o papel. E o ego adora plateia.
Como transformar a dor em travessia e não em prisão:
Identifique os ganhos secundários da dor: O que sua dor te protege de enfrentar? Que vínculos ela sustenta? Que funções ela cumpre no seu dia?
Pergunte-se quem você seria sem essa narrativa: O que muda se você deixar de ser a pessoa ferida? Que riscos aparecem? Que liberdades?
Observe os vínculos que só sobrevivem na sua ferida: Que relações se intensificam quando você está mal? E quem se afasta quando você melhora?
Reformule sua linguagem interna: Evite frases como “eu sou assim” ou “sempre fui o que mais sofreu”. Elas cristalizam a dor como identidade.
Crie rituais de transição simbólica: Escreva uma carta de despedida para sua versão ferida. Marque o fim de um ciclo. Dê nome ao que está ficando para trás.
Aceite que a melhora também gera perda: Você vai sentir saudade da dor. Porque ela era conhecida, estruturada, íntima. Mas isso não é recaída. É luto.
Desconfie da ideia de “superar”: Ninguém supera feridas profundas. Aprende-se a andar com elas sem que virem muleta ou currículo emocional.
Busque vínculos que sobrevivam à alegria: Relações verdadeiras não se alimentam da sua dor, mas da sua presença inteira — inclusive quando ela ri.
A dor pode ser honrada sem ser idolatrada. Pode ser escutada sem virar trilha sonora. O que ela pede não é eternidade, mas passagem. Um sujeito que aceite deixar de ser apenas a ferida para se tornar, enfim, aquele que a atravessa.