Quando o cuidado sufoca: por que o excesso de zelo pode esconder o medo de ser abandonado
Ninguém suspeita de quem cuida demais. O zelo excessivo veste a máscara da bondade. Quem cuida, protege. Quem protege, ama. Quem ama, não abandona. Mas sob o verniz do afeto dedicado, muitas vezes habita um movimento sombrio: o medo de ser deixado. E então o cuidado se torna armadura, vigilância, controle. Uma forma sofisticada de aprisionar o outro sem parecer agressivo. Afinal, é só carinho — e quem recusaria isso?
Vivemos em uma cultura que sacraliza o cuidado. A imagem da pessoa que pensa em tudo, que antecipa as necessidades do outro, que está sempre disponível — essa figura é celebrada como ideal relacional. Mas há uma linha tênue entre o amor que cuida e o cuidado que sufoca. O primeiro escuta. O segundo vigia. O primeiro espera. O segundo antecipa compulsivamente. O primeiro reconhece o outro. O segundo dissolve o outro em si.
A dificuldade está em perceber quando o gesto protetor deixou de ser expressão de afeto e passou a ser um mecanismo de controle travestido de doçura. A mãe que nunca deixa o filho errar, o parceiro que monitora todos os passos "por amor", a amiga que se oferece demais e depois cobra silenciosamente — todos variam a mesma estrutura. O cuidado que, por trás da generosidade, esconde uma tentativa inconsciente de garantir que o outro nunca vá embora. Porque se for, o cuidador se desfaz.
Do ponto de vista psicanalítico, esse tipo de zelo excessivo se ancora numa angústia de separação mal elaborada. Freud identificava no narcisismo primário uma fusão inicial entre sujeito e objeto: o bebê e a mãe são uma coisa só. A diferenciação só vem depois — e com ela, a dor da perda. Para quem não elaborou essa transição, o outro continua sendo um pedaço de si. E, por isso, não pode ter autonomia. Cuidar demais é uma forma de manter o outro colado à própria imagem.
Winnicott aprofunda isso ao distinguir entre o cuidado suficientemente bom e o cuidado intrusivo. No primeiro, há espaço para o sujeito se formar. No segundo, há uma superposição de desejos. O cuidador se antecipa tanto que impede a experiência do outro. Ele ama como quem impede. Teme tanto a dor da ausência que sufoca a presença. Assim, paradoxalmente, o cuidado se torna uma violência sutil: impede a individuação, mata a diferença, neutraliza o desejo do outro para manter a relação sob controle.
Cuidar, então, pode ser uma forma perversa de evitar o abandono. O que aparece como doação pode ser apenas medo. Não um medo banal, mas um pavor infantil de desaparecer se o outro não estiver ali. Essa lógica é comum em sujeitos com experiências precoces de desamparo, negligência ou rejeição emocional. Tornam-se cuidadores obsessivos para garantir laços. Acreditam que, se forem úteis, se estiverem sempre presentes, serão indispensáveis. Mas isso cria uma armadilha: só são amados na função de cuidar. Nunca na liberdade de ser.
A consequência é devastadora. Quando o outro começa a se afastar, o cuidador sente traição. Mas não pode nomear esse sentimento — afinal, ele “só cuidou”. Então a mágoa se transforma em ressentimento passivo, manipulação sutil, chantagem emocional. O outro é culpado por querer liberdade. O cuidador se transforma na vítima da própria generosidade. E a relação degringola, silenciosamente.
É preciso coragem para admitir que se cuida demais. Porque isso desmonta uma autoimagem heroica. Obriga o sujeito a reconhecer que não ama só por amor — ama também por medo. Medo de ser esquecido, trocado, deixado. Mas é nesse reconhecimento que começa a possibilidade de outro tipo de afeto: aquele que não vigia, que não calcula, que permite a ausência. Aquele que entende que o outro é outro, e não uma extensão do próprio ego.
Como identificar e transformar padrões de cuidado sufocante:
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